sexta-feira, março 16, 2007

Sempre do Lado das Grandes Causas

Petição ao Ex.mo Senhor Presidente da Câmara de Coimbra


A propósito da Situação de Alerta declarada pela Câmara Municipal de Coimbra ao abrigo da Lei 27/2006, de 3 de Julho, que considera como “imperioso e urgente efectuar a demolição/desconstrução das edificações (...)” numa zona considerável da Baixa, entre a Rua Direita e a Rua da Sofia, julgamos importante manifestar o nosso desacordo face a uma situação que parece ter como único objectivo o de promover a destruição de parte de um dos mais importantes núcleos urbanos medievais do país, sob o argumento dos imóveis que o integram se encontrarem em mau estado de conservação.

É um facto que muitos dos prédios da Baixa ostentam, desde há vários anos, um acentuado estado de degradação, situação que se repete – ou repetiu – em grande parte dos centros históricos um pouco pelo País e por toda a Europa onde, mercê da criação de novas centralidades, da falta de investimento nas zonas antigas, dos problemas de estacionamento e da escassez de condições de habitabilidade em edifícios antigos, se assistiu durante largos anos ao abandono e decadência destas áreas. É também notório que, em muitas destas cidades, se conseguiu, nos últimos anos, reverter esta situação, assistindo-se pelo contrário a uma revalorização dos centros históricos enquanto pólos de habitação e de comércio, procurados por turistas e locais, geradores de riqueza, de emprego e de actividades culturais.

Ao caso, é indubitável que as demolições previstas para a Rua Direita vão, inevitavelmente, destruir uma das mais antigas vias da cidade. O Metro Ligeiro do Mondego está a servir de excelente pretexto para, a reboque de uma pretensa "modernização" e, utilizando como argumento a degradação e o risco de colapso de alguns prédios, se “implodir” metade da Baixa. Este discurso “higienista” representa, à luz dos conceitos e prática internacional, uma visão completamente ultrapassada – anterior à década de sessenta - mas que, infelizmente insistimos em aplicar. Será que não aprendemos nada com os erros do passado? Ora, se é verdade que muitos dos edifícios estão, de facto, em condições deploráveis - e isto deve-se sobretudo à falta de uma política de reabilitação urbana e à inexistência de uma gestão adequada do centro histórico - também o é que a demolição é a solução mais fácil e a que melhor atenderá aos interesses do MLM, mas não necessariamente a mais barata e a que melhor serve a cidade e o seu património. De toda a maneira, o que parece não ter entrado em linha de conta é a identidade urbana de toda esta zona, a aposta a fazer na requalificação e recuperação do seu património, o incontornável valor urbano, histórico e sociológico da Baixa.
Numa altura em que o discurso político se debruça, finalmente, sobre a reabilitação do edificado, o desenvolvimento sustentado, a sensibilização dos proprietários e dos diversos intervenientes no processo de reabilitação (frases ainda recentemente proferidas pelo Ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional na Cerimónia de Lançamento do “Guia Técnico de Reabilitação Habitacional”, editado pelo LNEC e pelo INH, no dia 28 de Fevereiro de 2007), a atitude da Câmara de Coimbra parece desfasada dos propósitos enunciados pelo próprio Ministério da tutela.

De resto, se a demolição/descontrução dos prédios que ruíram pode apresentar perigo para os edifícios contíguos, existem soluções técnicas que permitem a sua reabilitação. Sendo válido o argumento de que “...este conjunto de edificações, que se encontra em estado de ruína, não apresenta um comportamento estrutural independente,...” logo, funcionando em “cadeia”, não será estranho que se adoptem como soluções a demolição parcial dessa “cadeia” e a alteração pontual do sistema estrutural com consequências nefastas (incompatibilidade estrutural, alteração do comportamento aos sismos, etc.) para as construções remanescentes? Ou será que, a par do argumento dos edifícios funcionarem "em cadeia", podemos então assumir que não há outra solução senão a de demolir toda a cadeia? Terão sido realizados estudos que analisassem o custo das acções de recuperação dos edifícios? Se sim, foram ou não tidos em conta? E será que o valor duma cidade que se quer candidatar a Património da Humanidade (ainda que a candidatura seja centrada na Universidade de Coimbra) não justifica um investimento maior nesta área? Qual a legitimidade de promover a destruição do coração da cidade medieval sob o argumento dos edifícios que o constituem se encontrarem em mau estado de conservação, numa altura em que a engenharia permite soluções de reforço estrutural, de consolidação e de conservação cada vez mais evoluídas? De resto, e considerando que toda a Baixa funciona como “zona tampão” da classificação da Universidade como Património da Humanidade, deverá o tratamento desta área promover, antes de mais, o conhecimento, a recuperação e a reabilitação na sua acepção mais verdadeira - que não é, seguramente, o modelo estafado e criticado por todas as cartas e convenções internacionais de património, de arrasar para depois reconstruir “à imagem de”...).

É verdade que a situação vem de longe: ante a expectativa da passagem do Metro, o desinvestimento crescente na conservação duma zona degradada, socialmente depauperada e sem imóveis de valor patrimonial relevante acentuou-se progressivamente durante os últimos anos. A demolição não pode, no entanto, ser a resposta. A “recuperação e renovação urbana e social da Baixa” promovida pela Sociedade de Reabilitação Urbana “Coimbra Viva”, e o “respeito pelo património edificado existente, suas morfologias e significados” terão como sinónimos a destruição “cirúrgica” de edifícios vernáculos, situados no núcleo histórico de uma das mais antigas cidades portuguesas? Em que medida é que estas acções se coadunam com a promoção de uma candidatura a Património Mundial, sobretudo numa cidade onde a destruição sistemática da “Alta” nos anos 40 do século XX deixou marcas profundas no urbanismo, na memória colectiva e no tecido social urbano, e onde o desvario construtivo e os interesses imobiliários dos anos 70 e 80 liquidaram irremediavelmente prédios, conventos, bairros e zonas inteiras consolidadas (como exemplos, entre tantos outros, vejam-se os casos da Igreja de São Domingos, na Rua da Sofia, convertida em Centro Comercial, e da Cruz de Celas, “assassinada” pela construção de blocos de apartamentos de volumetria dissonante)?

Face a todo o passivo da cidade, em que a especulação imobiliária e a construção civil foram, durante largos anos, um dos poucos motores do desenvolvimento (??) urbano de Coimbra, não podemos deixar de considerar que os interesses que movem uma aposta tão veemente na demolição do edificado sejam outros que não somente os da preocupação pela segurança e os do trajecto do Metro de superfície. Quanto a nós, não há razões que justifiquem a destruição deliberada, organizada, meticulosamente preparada sob a capa de uma legalidade apressada e tecnicamente discutível que permitam descaracterizar irreversivelmente todo um núcleo urbano homogéneo e sedimentado. Se a passagem do Metro é razão para estas acções (o que não parece suficientemente esclarecido nem fundamentado), porque não rever a trajectória definida? Os eventuais benefícios trazidos pela mobilidade e facilidade de comunicações, a expensas do aniquilamento de uma parte de cidade têm, parece-nos, um custo demasiado elevado.

Os erros do passado, de que Coimbra foi vítima ao longo de todo o século XX, deveriam servir para reflectirmos sobre a irreversibilidade destas atitudes. Não há quem não lamente, hoje, a destruição da Alta; poucos há que não condenem a especulação imobiliária, o crescimento desenfreado e caótico da cidade e as duvidosas opções urbanísticas dos anos 70, 80 e 90 do século passado; não é possível reparar esses erros, mas é certamente possível definir uma acção mais inovadora, de criação e não de destruição, de recuperação e de dinamismo, seguramente mais ecológica, mais económica e mais exemplar.

Finalmente, não são só as pedras e os edifícios que estão em causa: a “Baixinha” de Coimbra não é um cemitério de imóveis degradados e semi-abandonados; Tem habitantes, tascas, retrosarias, pequeno comércio, casas de pasto, para só falarmos nas áreas onde a degradação crescente das condições de habitabilidade ameaça desde há anos a sobrevivência dos seus residentes. A recuperação do edificado passa necessariamente pela manutenção deste frágil tecido social, ou mesmo pela sua revitalização e dinamização. E é esta, julgamos a aposta a fazer nesta zona.

Por esta razão, conscientes do peso duma cidadania activa e empenhada, e porque acreditamos que as soluções existem, vimos solicitar que se ponha termo à destruição e descaracterização da Baixa de Coimbra, consubstanciada, a coberto de uma discutível declaração do “Estado de Alerta”, na demolição indiscriminada de ruas, prédios e quarteirões.

13 de Março de 2007

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